Nas suas Memórias Arqueológico-Históricas do Districto de Bragança, o Abade
do Baçal (Francisco Manuel Alves, 1865-1947) faz referência a uma curiosa
ocorrência com que ilustra a passagem do exército aliado anglo-português por
terras mirandesas: um inscrição, em caracteres cursivos, na porta lateral da
Igreja Matriz de Malhadas:
Gen.
Lecor
Maio
24, 1813
Igreja Matriz de Malhadas (foto retirada
de
http://miranda_do_douro.voila.net/malhadas.htm)
|
Indica o insigne historiador
bragantino que fora o próprio general Lecor quem o escrevera.
Este pormenor da História, visto à
lupa, diz respeito ao então Marechal de Campo (hoje Major-General) Carlos
Frederico Lecor (1764-1836), comandante da brigada portuguesa da 7.ª Divisão,
constituída pelos Regimentos de Infantaria n.º 7 e 19 (respetivamente, de Setúbal
e Cascais) e o batalhão de Caçadores n.º
2 (de Moura). A brigada, que em julho desse ano será numerada como a 6.ª, forte
de 2,102 homens (de acordo com dados do mês anterior), acabava de chegar a
Malhadas, localizada a cerca de 10 quilómetros de Miranda do Douro, para onde fora enviada toda a 7.ª Divisão, comandada pelo Lord
Dalhousie.
Afastando a lupa, deixando ver o mapa
maior, esta brigada tinha partido de Moimenta da Serra, a 14 de maio, junto com
a 3.ª Divisão, após lá ter invernado no seguimento do fim da campanha de 1812. As
ordens, emitidas no dia anterior pelo Marquês de Wellington, ou ‘Douro’, como
era conhecido entre os nossos soldados, ordenaram todo o exército a agrupar-se
em dois grandes aglomerados de tropas: um primeiro, sobre o comando do general Sir
Rowland Hill, em torno de Ciudad Rodrigo, constituindo a ala direita, e outro,
o maior, aos cuidados do general Sir Thomas Graham, na fronteira nordeste
portuguesa, no distrito de Bragança, com o ambicioso objetivo de fazer cumprir
o Plano de Wellington para 1813.
A concentração na fronteira nordeste fez-se
em três pontos distintos:
- Bragança, mais a norte (com a Divisão espanhola da Galiza à
esquerda), constituída pelas Brigadas de cavalaria pesada de Anson e Ponsoby,
vindas respetivamente de Braga e Guimarães, de onde partiram a 13 e 17 de maio,
a 1.ª Divisão de infantaria (exclusivamente britânica), vinda de Viseu e
Mangualde a 13, e a Brigada portuguesa independente de Pack (futura 1.ª Brigada
de infantaria), vinda de Penafiel também a 13. Estes unidades chegaram entres
os dias 22 e 23 de maio;
- Vimioso & Outeiro, ao centro, constituída pela Brigada
portuguesa de cavalaria ligeira de D’Urban e pela Brigada de cavalaria pesada
alemã de Bock, vinda de Santo Tirso no dia 14 de maio, as 3.ª e 5.ª Divisões de
infantaria [1], vindas respetivamente de Moimenta da Beira (a 16 de maio) e
Lamego (a 14), por via de São João da Pesqueira, onde atravessaram o Douro; e,
finalmente, a Brigada portuguesa independente de infantaria de Bradford (futura
10 .ª). De acordo com os Supplementary Dispatches, a sua data de chegada a
Vimioso e Outeiro ocorreu entre os dias 21 a 24 de maio;
- Miranda do Douro e Malhadas, ao sul, formada pela Brigada de
cavalaria Hussarda de Grant, as 4.ª, 6.ª e 7.ª Divisões de Infantaria [2],
vindas da área de São João da Pesqueira [3], de Seia e de Moimenta da Serra. As
duas últimas divisões partiram dos seus locais de acantonamento no dia 14 de
maio e chegaram ao seu destino nos dias 23 e 24, respetivamente, cruzando o
Douro na barca de Pocinho. A Brigada dos Hussardos, como é referida nas ordens,
terá chegado a Miranda ou a 26 ou 27, sem indicação nas fontes de onde terá
partido.
Grande parte da artilharia não
agregada às divisões, e que estava alocada a esta ala, como a brigada
portuguesa de 18 libras e a Brigada de reserva, ou o trem de pontão para a
travessia de rios, deslocou-se para Miranda do Douro.
Chegados aos seus pontos de reunião,
toda esta ala esquerda do exército, constituída pela grande maioria dos
recursos do exército aliado, estava pronta para, em três colunas, cada uma delas
partindo das áreas descritas acima, penetrar em território espanhol e cumprir o
Plano de Wellington. A 26 de maio, todas estas tropas colocaram-se em
movimento, com as respetivas forças de cavalaria na vanguarda.
Voltando ao início, não sei qual a
intenção de um dos seus comandantes de brigada, Carlos Frederico Lecor,
escrever ou mandar escrever o seu nome e a data na porta lateral da Igreja
Matriz de Malhadas, um templo simples, de traça gótica, dedicado a Nossa
Senhora da Expectação, naquele dia de 24 de maio, e que ontem cumpriu o seu
humilde bicentenário.
Essa porta é escondida por um
alpendre e dá acesso direto à nave única da igreja, pelo que não tinha como
objetivo decerto a identificação; pouco provável seria também que Lecor ali
posicionasse o comando da brigada ou ali ficasse a residir. Posso apenas calcular
que tenha sido promessa, ou a encomenda da alma, ou o pedido de intercessão à
Nossa Senhora pelo futuro. Se assim for, parece-me adequado que seja feito
àquela faceta do culto mariano que celebra o porvir, o que virá, a expectação.
[1] Cada uma destas divisões tinha
uma brigada portuguesa de infantaria, na 3.ª Divisão, a Brigada de Power
(futura 8.ª Brigada: Regimentos de Infantaria n.º 9 e 21 e Batalhão de
Caçadores n.º 12), e na 5.ª, a Brigada de Spry (futura 3.ª Brigada: Infantaria
3 e 15 e Caçadores 8).
[2] Cada uma destas divisões tinha
uma brigada portuguesa de infantaria, na 4.ª Divisão, a Brigada de Stubbs
(futura 9.ª Brigada: Infantaria 11 e 23 e Caçadores 7); na 6.ª a Brigada de
Madden (futura 7.ª Brigada: Infantaria 8 e 12 e Caçadores 9), e na 7.ª, a
Brigada de Lecor (futura 6.ª Brigada: Infantaria 7 e 19 e Caçadores 2).
[3] As várias fontes consultadas não
permitem identificar a localização exata onde a 4.ª Divisão invernou, mas Oman
coloca-a junto ao rio Douro, algures na área de Moimenta da Beira e São João da
Pesqueira. Seja como for, e ainde de acordo com Oman, o quartel general desta
divisão estava localizado em São João da Pesqueira, em início de dezembro do
ano anterior.
Bibliografia
- Supplementary despatches and memoranda of
Field Marshal Arthur, duke of Wellington, K. G (Volume 14), John Murray:
Londres, 1872;
- Abade do Baçal, Memorias archeologico-historicas do districto
de Bragança : ou repositorio amplo de noticias chorographicas (vol. 4),
Coimbra : Imprensa da Universidade, 1911-1918;
-
René Chartrand, The Portuguese Army of
the Napoleonic Wars (v. 3) (Col. Men-at-Arms, n.ºs 343), Oxford, Osprey
Pub., 2000;
- Sir
Charles Oman, A History of the Peninsular
War (Volume VI), Green Hill Books: Londres, 1996 (1922).
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